O Memorial da Carioca foi construído pela Prefeitura Municipal de São José dos Pinhais em 2004, por meio da Secretaria de Cultura (SEMUC). Fica na região central da cidade, próxima a prédios públicos como a Capela Mortuária Municipal, Serviço Funerário e sede do Tribunal Regional Eleitoral. Nele, há um painel criado pelo artista Roney Wilmar Erthal, que retrata uma bica d’água – a Bica da Carioca – que existiu no local no século XIX e primeiras décadas do XX. O painel mostra a movimentação de pessoas negras, a lavagem de roupas, o carregamento de água e crianças brincando.
Pesquisando fontes históricas, como as que seguem, podemos conhecer muita coisa sobre o Memorial da Carioca e sobre a Bica da Carioca, que ele representa.
Transcrição do documento: “Tendo em vista a ordem e deliberação da Ilma. [Ilustríssima] Câmara de 11 de junho pp [próximo passado] na qual me autoriza a mandar fazer os concertos da Carioca desta Vila ao lado do Norte a que de comum acordo com o vereador Manoel Ferreira de Mello, contratei com o súdito português Joaquim Teixeira Duarte pelo preço e quantia de quarenta mil réis, e como se acha pronto os ditos consertos portanto levo ao conhecimento de V SS [Vossas Senhorias] para deliberarem ao pagamento. […] São José, 2 de julho de 1861.”
TEMPOS DE ESCRAVIZAÇÃO
No século XIX, quando foi construída, a bica era um lavadouro público com cisterna e torneiras para coleta de água potável. Historiadores que pesquisaram sobre várias cidades do Brasil mostraram que trabalhadores negros – escravizados, libertos ou livres – foram muito importantes nas tarefas realizadas nas cariocas, entre elas a lavagem de roupas e o carregamento de água. Isso ocorreu também em São José dos Pinhais.
O fornecimento de água era muito importante para o funcionamento da cidade, mas não era o único ofício exercido por trabalhadores e trabalhadoras negras, que realizavam também tarefas domésticas, eram lavradores, tecelões de vestimentas, engomadeiras, doceiras, torradeiras de café, cozinheiras, extratores e produtores de mate, pedreiros, carpinteiros, carregadores, carroceiros. Os escravizados podiam trabalhar diretamente para os senhores ou para outras pessoas, alugados ou postos ao ganho, ou seja, obrigados a entregar aos senhores uma determinada quantia em dinheiro que recebiam por atividades que exerciam de forma autônoma nas cidades.
Mesmo na vigência da escravidão, muitas pessoas escravizadas conseguiram obter a alforria. Como uma pessoa escravizada podia se tornar um liberto? Uma das formas de obter alforria era por meio da concessão senhorial, que pode também ser entendida como uma conquista da pessoa escravizada, pois podia resultar de negociações cotidianas. Mas a alforria podia ser também comprada pela própria pessoa escravizada, principalmente quando realizava tarefas como escravo de ganho e podia obter um valor superior ao que estava obrigado a entregar ao senhor.
A alforria era uma conquista difícil. Mesmo assim, várias pessoas escravizadas conseguiram alforriar-se quando a escravidão ainda era vigente. Algumas, entretanto, só se tornaram livres com a Abolição, em 1888.
NO ENTORNO DA BICA, EXPERIÊNCIAS NEGRAS NO PÓS-ABOLIÇÃO
Em São José dos Pinhais o entorno da bica foi ocupado por pessoas negras que se tornaram libertas antes da Abolição da Escravidão e também no período Pós-Abolição. Além de moradia, havia várias residências de negros e negras que preparavam doces e outras nas quais se faziam bailes para animação dos moradores.
No início do ano de 2013, apenas uma descendente de escravizados ainda vivia no local. Era a senhora Zélia Nogueira dos Santos, nascida no dia 5 de janeiro de 1935 e falecida no dia 7 de maio de 2013. Em entrevista concedida a Maria Angélica Marochi, em 2013, ela contou várias coisas sobre o local e as experiências de pessoas negras que ali viviam.
I – ENTREVISTA COM SRA. ZÉLIA
[…] A maioria das pessoas da carioca era negra e os mais antigos eram todos descendentes de escravos. Sei que aqui tudo era mato, mato, mato mesmo. Você não enxergava nada. Tinha apenas um carreiro para a gente sair lá na pedreira. Quando conheci a minha avó que foi escrava ela já era uma pessoa de muito idade, bem velinha (…) a vida dos moradores daqui era muito difícil. Lembro que minha mãe e o meu pai iam cortar lenha ali na chácara do Zaniolo, atual bairro Jardim. Eles faziam aqueles montes de lenha para depois receberem pelo corte. Enquanto eles ficavam cortando a lenha eu ficava dentro de um buraco bem grande. Eles faziam um buraco na terra e me colocavam ali para eu não escapar. (…) sei que muitos diziam que quem morava na Carioca era ladrão, bandido ou assassino. Aqui o povo era perseguido. Qualquer coisa que acontecia eles já vinham e levavam as pessoas (…) A gente ficava por aqui e eles faziam aquelas domingueiras. O pessoal se reunia em uma das casas e ali tocavam gaita e violão. O pessoal gostava de dançar. (…) Lembro que contavam que fandango já era do tempo do meu pai. Eles faziam baile que iam todos de tamanco. Dançavam e punham o dinheiro para São Benedito. A maioria dos bailes acontecia ali na Barroca Funda, lá mais para baixo, local onde havia um salão para fandango. Quem frequentava eram mais negros. Não quer dizer que brancos também não fossem, mas a polícia era contra.
Endereço:
Rua Voluntários da Pátria, entre a Capela Municipal Natalina Berti, n° 95 e a Funerária São José.
No cinema localizado na rua XV de Novembro, nas décadas de 1920 e 1930, o músico negro Francisco Pereira – Chiquinho Pereira, como era conhecido – fez as trilhas sonoras dos filmes que ainda eram mudos na década de 1930. Segundo reportagem do Jornal da Cidade, ele tocava também em reuniões familiares e serenatas. A história de Francisco Pereira como musicista nos remete às experiências vivenciadas por negros e negras no período do Pós-Abolição. Por meio da música, muitos puderem vislumbrar oportunidades de se inserir socialmente, mesmo com todas as dificuldades e enfrentamentos em uma sociedade racista. De acordo com o Jornal da Cidade, o cinema em que Francisco tocava foi criado em 1917 na Rua XV de Novembro no centro de São José dos Pinhais, onde atualmente fica uma loja da rede Pernambucanas. A história do cinema em São José dos Pinhais inicia em 1910 com sessões que aconteciam no Clube XV de Novembro, próximo à Igreja Matriz. A estrutura da sala não era ainda a tradicional das salas de cinema; os bancos eram feitos de ripas e pintadas de verde. A estética tradicional (poltronas enfileiradas) começa a parecer quando o cinema passa para propriedade de José Zaniollo. Ele amplia e reforma a estrutura por volta de 1920, formando o Ideal Cinema, com cadeiras coloniais separadas por corredores laterais, camarotes para cinco pessoas que ficavam na parte superior do salão, c. O som não era sincronizado com a película cinematográfica e para animar e dar ritmo às imagens mudas, a banda regida pelo maestro negro Chiquinho Pereira tocava durante as exibições. Os participantes da banda se reuniam dias antes das sessões para assistir aos filmes, assim, a melodia da música podia ser sincronizada com a cena exibida. A sala de cinema, nos fins de semana, dava lugar aos famosos bailes e peças teatrais.
Endereço:
R. Quinze de Novembro, 1525 – Centro, São José dos Pinhais – PR, 83005-000.
Na Catedral de São José dos Pinhais, conhecida como Igreja Matriz, durante a vigência da escravidão eram batizadas crianças nascidas de mulheres escravizadas e libertas. Os registros de batismo eram documentos que oficializavam o nascimento, pois não existiam, até o final da década de 1880, os registros civis como praticamos atualmente. Ali também eram registrados casamentos entre pessoas escravizadas.
“Diz Barnabé Ferreira Belo, que estando há muitos anos no pleníssimo gozo de sua liberdade e na gerência dos poucos bens obtidos pelo seu trabalho, nesta capital, em virtude do abandono em que o deixou o seu ex-senhor, Reverendo Padre João Batista Ferreira Belo, residente na vila de São José dos Pinhais; e achando-se esses fatos demonstrados pelos documentos juntos, firmados por pessoas dignas de crédito, sendo ainda eles geralmente conhecidos pela população desta cidade; precisa o suplicante que
Vossa Senhoria o mande manumitir na forma do direito adquirido em face da suposição [sic] do parágrafo quarto do artigo sexto da lei número dois mil e quarenta de 28 de setembro de mil oitocentos e setenta e um”.
FONTE: Ação de Liberdade, 1880. Apud MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Escravidão e Liberdade no século XIX: condição social e estatuto jurídico. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, SC. Julho 2015.
Texto explicativo: O cruzamento dessa fonte com a do registro de batismo de Zacarias Alves Pereira evidencia que o padre que fez o registro era ele próprio possuidor de escravizados, entre eles, Barnabé, que, na segunda metade do século XIX morava e exercia o ofício de sapateiro em Curitiba, como escravo de ganho do padre, portanto vivendo e trabalhando longe de seu senhor. O estudo feito pela historiadora Noemi Santos da Silva mostra que em 1874 Barnabé se matriculou em uma escola noturna e viu na escolarização um suporte para se aperfeiçoar no ofício, e alfabetização. Ele comprava e vendia materiais em sua oficina, assinava recibos, arcava com o próprio aluguel e até mesmo negociava terras. A escola e o letramento podem ainda ter dinamizado o acesso às leis de emancipação vigentes, no caso de Barnabé, que em 1880 entrou com um processo contra o padre querendo ser declarado livre porque vivia de forma autônoma. O processo mostra que o padre se opôs tenazmente a essa demanda de Barnabé, que acabou sendo derrotado na Justiça, obtendo sua alforria apenas anos mais tarde.
Endereço:
Praça Oito de Janeiro, s/n – Centro, São José dos Pinhais – PR, 83005-010.
Na atual rua Praça Oito de Janeiro, próximo ao número 1331, morou um homem negro que teve bastante projeção na cidade de São José dos Pinhais: Zacarias Alves Pereira, cuja trajetória elucida aspectos importantes da experiência de pessoas negras no Pós-Abolição.
No Livro de Registro de Emancipação dos Escravos de São José dos Pinhais que começou a ser escrito em 1871 e foi concluído em 1873, Zacarias foi registrado como, “mulato”, 12 anos, lavrador, filho de Dorothea, escravizado de Generosa Andrade Pereira, Anna Maria Alves Pereira, Francisca Alves Pereira, Maria Regina de Andrade Pereira. Na primeira metade do século XX, Zacarias morou em um sobrado onde atualmente fica uma loja de móveis. O casarão, como era chamado, teve diversas funções, tendo abrigado a Biblioteca Pública Scharffenberg de Quadros, a primeira Caixa Econômica Federal de São José dos Pinhais (1945) e até a Igreja Matriz quando essa passava por reformas. Ali também se reuniam músicos para os ensaios de bailes da cidade, tendo funcionado também como casa comercial denominada “Empório dos Alves Pereira”, em 1857.
Em dezembro de 1989 a prefeitura de São José dos Pinhais inaugurou o Espaço Cultural Zacarias Alves Pereira. O Boletim Informativo Comunicação, publicado pela prefeitura que anuncia a inauguração do espaço, informa que a ideia de homenagear Zacarias partiu da constatação de ter sido este “um dos primeiros (senão o primeiro) a manifestar trabalhos de cunho artístico nesta cidade” e que o Espaço Cultural se destina a “acolher e desenvolver a produção artística desta terra”. Segundo o informativo, Zacarias desempenhou várias atividades na cidade, entre elas o de tenente da Guarda Nacional e tesoureiro da Prefeitura; no campo artístico deixou inúmeras obras como pinturas em tela, esculturas, objetos artesanais, além de ser participante da banda musical “Santa Cecília”. Algumas de suas obras foram incorporadas ao acervo do Museu Municipal, como o quadro da deusa da justiça, Têmis (óleo sobre tela, 1925) e as esculturas de madeira “Sant’Ana e Virgem Maria” (1916). Os jornais dedicam-se a ressaltar de forma positiva seus ofícios, habilidades nas diversas atividades que desempenhou, sem mencionar, entretanto, o fato de ele ter sido uma pessoa escravizada e negra. Assim como nos jornais, podemos perceber, observando a gravura, elaborada a partir de fotografias de Zacarias, uma possível tentativa de branqueamento e apagamento da sua identidade racial. Portanto, ao mesmo tempo em que constrói uma memória sobre seus ofícios na cidade, apaga seu pertencimento racial e promove o silenciamento sobre a importância de pessoas negras na cidade, reforçando o preconceito racial.
Endereço:
Endereço: Praça Oito de Janeiro, 1313.
A senhora Zélia Nogueira dos Santos nasceu em São José dos Pinhais no dia 5 de janeiro de 1935. Em maio de 2013, ao falecer, era a única descendente, da 2° geração de pessoas escravizadas em São José dos Pinhais que ainda vivia na região da antiga Carioca. Na década de 1940, Zélia frequentou o Grupo Escolar Silveira da Motta, que era então a única escola pública localizada no centro urbano, e funcionava no prédio onde atualmente se localiza a Biblioteca Municipal Scharffenberg de Quadros.
A instrução escolar foi muito importante para a população negra no período Pós-Abolição. A percepção de que a escolaridade poderia representar um meio de mobilidade social e possíveis melhorias nas condições de trabalho daqueles que soubessem ler e escrever, significava possibilidades de ascender socialmente.
Entre as muitas memórias que mobilizou na entrevista que deu a Maria Angélica Marochi em 2012, estavam as que se referiam à escola Silveira da Motta, a mais antiga escola pública da cidade, fundada 1908 como cadeira de instrução masculina e, em 1914, sendo transformada em casa escolar para em 1919 se tornar grupo. Esse ponto do percurso permite abordar a importância da instrução escolar para a população negra urbana e também o preconceito racial enfrentado nesses espaços, pois uma das lembranças que Sra. Zélia expressou sobre a escola em que estudou era justamente relacionada a esse aspecto.
Endereço:
Praça Oito de Janeiro, 120 – Centro, São José dos Pinhais – PR, 83005-185.
Nesse local, segundo a historiadora Maria Angélica Marochi, residiu a mulher negra Galeana, que até 1888 viveu na condição de escravizada e, após a abolição, passou a exercer a profissão de parteira. Antigos moradores do centro de São José dos Pinhais nascidos ainda nas três primeiras décadas do século XX relataram a Marochi que os trabalhos de Galeana eram muito procurados e que ela era uma “parteira muito popular”.
A experiência de Galeana expressa as possibilidades profissionais que pessoas ex-escravizadas tiveram no período Pós-Abolição. Segundo reportagem, ela possuía grande experiência na profissão e era muito procurada, tendo realizado partos de famílias por três gerações. Além disso, as famílias a convidavam para ser madrinha de grande parte das crianças cujo parto ela realizava.
A história de Galeana também nos diz sobre experiências vividas na condição de escravização. O Livro de Classificação dos escravos para Serem Libertados pelo Fundo de Emancipação de São José dos Pinhais, um documento produzido no ano de 1873, informa que ela era escravizada de Maria Ursulina Mendes de Sá para quem trabalhava como doméstica; que tinha uma filha chamada Hejlaria, que na época tinha 4 anos. Sua senhora também mantinha em escravidão Clara, de 37 anos, descrita igualmente como doméstica, mãe de Autta de 10 anos, Emeliano de 13, Isabel de 8, Maria de 7, Augusta de 5, Belarmino de 4 anos.
O autor Eduardo Spiller Pena constatou que Clara e Galeana resistiram e lutaram diversas vezes contra as formas violentas de opressão a que foram submetidas por sua senhora. Consultando ofícios do delegado de São José dos Pinhais, o autor identificou reclamações que as duas mulheres enviaram à autoridade denunciando sua proprietária por abusos e castigos. Num ofício remetido ao delegado, o chefe de polícia informou que por duas vezes Galeana recorreu à autoridade e registrou denúncias contra os castigos feitos por Maria Ursulina Mendes de Sá. Pena observa que a escravizada demonstrou seu objetivo não só de escapar de sua senhora, mas de mostrar o seu descontentamento com a forma como era por ela tratada. Sua companheira de escravidão – Clara -, agiu da mesma forma, fugindo e denunciando ao delegado os maus tratos e castigos a ela aplicados por Maria Ursulina. Essas atitudes das escravizadas demonstram que visavam dar fim à relação de dominação, e que como no caso de Clara, exigia direito à compra de sua liberdade ou a venda para outros proprietários.
Legenda explicativa: A historiadora Maria Angélica Marochi, que viveu no centro da cidade, informou que conheceu pessoalmente a casa de Galeana e que “era bonita, com paredes de estuque e tinha uma calçada larga de pedras pretas na frente”. Segundo ela, a foto que colocou em seu livro Ordem e Poder mostra a casa da Galeana, que é aquela sozinha no fundo da praça, aos fundos do prédio da atual Biblioteca Scharffenberg de Quadros.